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Um Duque na Boca do Inferno-1ª parte

O jornal on lineObservador tem vindo a publicar uma série de podcasts sobre a passagem do Duque de Windsor por Portugal [ouvir aqui o trailer].

Neles há excertos de uma entrevista que me foi feita há uns meses, como preparação para o trabalho. Amigos meus que tiveram a oportunidade de ouvir, levaram a gentileza ao ponto de me felicitar.

Sucede que há 22 anos, sob o título Um Duque na Boca do Inferno, publiquei numa colectânea  editada pela Câmara Municipal de Cascais, denominada O Século XX em Revista, um extenso artigo sobre o tema. 

Permito-me arquivar aqui este texto.

Estou certo que as pesquisas que efectuei nos Arquivos Britânicos, em Kew Gardens, precisam de ser complementadas, pois à data em que ali trabalhei em recolha de material para o que escrevi, havia ainda inúmeros documentos com acesso vedado até um certo limite temporal.

Eis, pois a primeira parte do texto com alguma ligeira revisão. Os restantes capítulos serão publicados de seguida.

Revendo hoje quanto escrevi tenho algumas dúvidas quanto ao que ainda hoje é dado como possível: ter sido planeado um rapto do Duque de Windsor, por actuação dos serviços secretos alemães, fazendo-o sair da vivenda de Ricardo Espírito Santo, em Cascais e rejeitando o humilhante cargo de Governador das Bahamas para o qual o Governo britânico o destinava.

Não que tenha havido uma movimentação em torno da sua pessoa em torno do seu destino. A dúvida essencial que se me suscita consiste em saber em que medida a sua vontade, nolens volens, não aceitaria colaborar num destino que tivesse a Alemanha como território de acolhimento.

Olhando com nostalgia para alguns dos muitos livros que fui adquirindo nessa altura para ter escrito o que então escrevi, como que memória a preto e branco, fica-me o desejo de poder retomar um dia uma investigação que a vida se encarregou de suspender.

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Falar das redes de espionagem estrangeira em Portugal durante a Segunda Grande Guerra e de actos isolados de espionagem que por aqui se praticaram, passa necessariamente por falar da linha de Cascais.

Se bem que, aparentemente, não fosse local onde houvesse algo de específico a espiar era, pelo menos, lugar de confluência de muitos dos que actuavam no mundo das sombras e da clandestinidade.

Local de residência, de diversão, de refúgio e de passagem, lugar enfim de intriga, Cascais é, por isso, referência obrigatória em livros de memórias e em algumas das aventuras que se viveram no nosso país durante esse conturbado período.

O objectivo deste trabalho é  apenas o de rememorar, em estilo narrativo, alguns dos eventos que tiveram Cascais como local de ocorrência e a espionagem como móbil da acção.

Tratemos pois de Cascais.

Mas que linha de Cascais, importa perguntar?

Cascais local costeiro, com excelente vista para o mar e um excelente ponto de observação para todo o movimento marítimo?

O termo da linha, o Casino no Estoril, os passeios, os hotéis de fino trato, por toda a costa, ponto de veraneio e de obrigatória diversão, onde se encontravam os playboys e as mulheres fatais, seres de vida dúplice que enganavam com a falta de discrição o que tinham de secreto, aquilo que houve quem, com ironia designou como a hotbed of spies?

Cascais terra de refúgio e de passagem, local provisório para muitos que, por não terem meios de fortuna, ou a sorte de encontrarem uma vaga onde se albergarem, atafulhavam as pensões e casas de hóspedes, à espera de um bilhete para um navio destinado às Américas ou para qualquer outro local fora da Europa, ocupada pelas tropas nazis?

Cascais cenário de intriga internacional, palco de golpes de audácia dignos de romances, e alguns vieram mesmo a constituir guiões de novelas cinematográficas?

Ou, enfim, Cascais terra de exílio, onde reis em desgraça e ditadores apeados procuravam a amenidade do clima e uma ambiência de sossego propícias ao seu retiro dourado?

É de todos estes Cascais e de cada um que gostaríamos de poder falar, num passeio que começasse em Lisboa e se espraiasse ao longo de toda a extensa marginal até aos contrafortes de Sintra, ou que viandasse pela rota oposta, desde o aeroporto de Sintra, onde tantos estrangeiros conheciam pela primeira vez o oásis que então era Portugal, um país pobre mas em paz.

Não teremos tempo para tanto.

Por isso, qual guia previsto para turistas apressados, importaria fazer um sightseeing apenas pelos pontos mais pitorescos. Decidimo-nos a tal.

Mas para que a excursão fosse produtiva e numa só viagem se fizessem todas as viagens, optámos por visitar um só local e reviver um único episódio.

O presente texto irá tratar da passagem por Lisboa de Edurado VIII, o Duque de Windsor, em Julho de 1940.

Três razões confluem para a escolha deste episódio.

Primeiro, porque se trata de uma ocorrência que começa e termina em Cascais, em que os eventos e o local se confundem quase por inteiro.

Segundo, por se tratar de uma história pouco estudada e escassamente conhecida pelos leitores portugueses.

Terceiro, porque nela se entrecruzam a intriga e a espionagem, as razões de Estado e os afectos íntimos, a luz e as sobras, a verdade e as conveniências.

Num outro ângulo, se há história que seja a história viva da «neutralidade colaborante», definida em 1939 por Oliveira Salazar, e das suas contradições, ela é uma delas.

Mas ela é sobretudo a história dos embaraços da nossa mais velha aliada, vivida em directo num momento em que o país era visitado por um outro Duque – o Duque de Kent – em representação de um outro rei – o legítimo Jorge VI – visita cujo significado político poderia ser ensombrado por este Duque de Windsor que já havia sido rei, como Eduardo VIII, mas que hoje era apenas uma hipótese possível para o III Reich de colocar no trono britânico um monarca germanófilo.

Vamos pois falar da passagem por Lisboa do Duque de Windsor, o homem que abdicou de ser rei por causa dos tórridos amores com uma senhora americana, já divorciada, Mrs. Walis Warfield, ex-Mrs. Ernest Simpson, que o haviam afastado do trono britânico, onde reinara, de 20 de Janeiro a 10 de Dezembro de 1936, como Eduardo VIII.

Edward Albert Christian George Andrew Patrick David é conhecido sob diferentes títulos [Duque de Windsor (após a sua abdicação), Príncipe Edward de York, Príncipe Edward de Cornwall e York, Duque de Cornwall, Príncipe de Gales, e rei Eduardo VIII]. Nasceu em 23.06.894 em Richmond (Surrey) e faleceria em Paris em 28.05.972.

O seu padrinho foi o czar Nicolau II.

Com a morte do Rei Eduardo V, em 20.01.36, seria proclamado seu sucessor.

O seu relacionamento, a partir de 1930, com a senhora Walis levaria à sua abdicação em favor do irmão, o qual lhe sucederia como Jorge VI. Seria rei durante 325 dias.

O objecto da sua paixão foi um ser controverso, embora seguramente diabolizada para além dos limites,vistos os sérios interesses em presença.Bessie Wallis Warfield, uma americana que acolheu o nome de Wallis Warfield Spencer (do seu matrimónio em 1916 com um piloto da marinha, Earl W. Spencer) e mais tarde de Wallis Warfield Simpson (devido ao seu ulterior casamento com o tenente Ernest A. Simpson, entre 1928 e 1937), duplamente divorciada, envolvera-se sentimentalmente com o Duque desde uma altura em que ainda estava ligada legalmente ao seu segundo casamento.

Tal ligação a uma estrangeira, não nobre e ainda por cima divorciada, geraria tais problemas que se tornou insuportável a continuação de Eduardo no trono que há tão pouco tempo ocupava.

Num discurso radiofónico, anunciando ao mundo a sua abdicação, proferiu a frase que se tornaria lendária desde então, por marcar o paroxismo entre os seus deveres oficiais e os seus apelos sentimentais: «I have found it impossible to carry the heavy burden of responsibility and to discharge my duties as king as I wish to do, without the help and support of the woman I love».

Eis o texto integral do discurso:

«At long last I am able to say a few words of my own. I have never wanted to withhold anything, but until now it has not been constitutionally possible for me to speak. A few hours ago I discharged my last duty as King and Emperor, and now that I have been succeeded by my brother, the Duke of York, my first words must be to declare my allegiance to him, this I do with all my heart. You all know the reasons which have impelled me to renounce the throne. But I want you to understand that in making up my mind I did not forget the country or the Empire, which, as Prince of Wales, and lately as King, I have for twenty-five years tried to serve. But you must believe me when I tell you that I have found it impossible to carry the heavy burden of responsibility and to discharge my duties as King as I would wish to do without the help and support of the woman I love. And I want you to know that the decision I have made has been mine and mine alone. This was a thing I had to judge entirely for myself. The other person most nearly concerned has tried up to the last to persuade me to take a different course. I have made this, the most serious decision of my life, only upon the single thought of what would, in the end, be best for all. This decision has been made less difficult to me by the sure knowledge that my brother, with his long training in the public affairs of this country and with his fine qualities, will be able to take my place forthwith without interruption or injury to the life and progress of the Empire. And he has one matchless blessing -, enjoyed by so many of you, and not bestowed on me – a happy home with his wife and children. During these hard days I have been comforted by Her Majesty my mother and by my family. The ministers of the crown and, in particular, Mr. Baldwin, the Prime Minister, have always treated me with full consideration. There has never been any constitutional difference between me and them, and between me and Parliament. Bred in the constitutional tradition by my father, I should never have allowed any such issue to arise. Ever since I was Prince of Wales, and later on when I occupied the throne, I have been treated with the greatest kindness by all classes of the people wherever I lived or journeyed throughout the Empire. For that I am very grateful. I now quit altogether public affairs and I lay down my burden. It may be some time before I return to my native land, but I shall always follow the fortunes of the British race and Empire with profound interest, and if at any time in the future I can be found of service to His Majesty in a private station, I shall not fail. And now, we all have a new King. I wish him and you, his people, happiness and prosperity with all my heart. God bless you all ! God save the King !»

Eis o ser de quem vamos falar. Um rei apeado e um ser humano insatisfeito.

Sobre o seu caso já se escreveu imenso.

Uma obra de referência é o estudo de Michael Bloch, Operation Willi, the plot to kidnap the Duke of Windsor, Weindenfeld and Nicolson, 1984.

O tema reacendeu-se quando se tratou de divulgar os papéis de Walter Monckton, guardados na Bodleian Library, em Oxford.

Só que, por determinação oficial, os documentos cruciais de cunho pessoal, nomeadamente os atinentes à sua relação com Edward, foram encerrados até ao ano de 1937.

Sobre o casal há já uma significativa literatura.

As memórias do Duque, sob o título A King’s Story, foram editadas em 1947, pela Putnam & Sons, dando origem a um filme. Em 1960 editaria um outro livro sob o título Windsor Revisited. As memórias da Duquesa, The heart has its reasons, seriam publicadas em 1959. As suas cartas com o duque seriam também editadas por Michael Bloch em 1986, sob o título Wallis and Edward: letters, 1931-1937, the intimate correspondance of the Duke and Duchess of Windsor.

Entre as múltiplas biografias das suas pessoas pode citar-se a escrita por Jose Byran III e Charles J. V. Murphy, editada em 1979, com o título The Windsor Story.

Mas há muito mais: Greg King, The Uncommon Life of Wallis Simpson; Hugo Vickers,  Fritz von der Schulenberg e Joseph Friedman, The Private World of the Duke and Duchess of Windsor; Michael Bloch, Duke of Windsor War, from Europe to Bahamas, 1939-1945, 1983.

O personagem tem tudo de controverso, a começar pelas ideias.

O seu germanofilismo persegue-o já no momento em que, vindo de Espanha, faz entrada em Lisboa em 3 de Julho de 1940, numa altura complexa para a vida política do país.

O Duque chega a Portugal, via Espanha, vindo de França, onde se encontra colocado em funções militares.

Se bem que a Duquesa, no seu livro de memórias, atribua essa saída para Espanha a uma chamada de Winston Churchill, transmitida através do Embaixador em Madrid, Sir Samuel Hoare, que lhes fizera saber que dois hidroaviões os aguardavam em Lisboa, a verdade é que, para a História, a chegada a Lisboa foi apresentada como um acto de deserção do monarca que na altura desempenhava funções militares em França, das quais se ausentou.

Ainda hoje está em aberto o saber se Eduardo foi atraído a Lisboa, para que se dirigisse a Londres, ou se surgiu inopinadamente aqui, abandonando os seus deveres militares em França.

A entrada do casal no país faz-se pela fronteira de Elvas, onde os acolheu uma calorosa recepção popular.

Neil Hogg,  então com trinta anos de idade, e que havia ficado para trás, ocupado com problemas de intendência do Duque, que tão pesada comitiva arrastava consigo, encontrou os Duques «espantados, gratificados e de algum modo confusos» e comenta para o seu diário que «segundo recolhi, eles foram prontamente reconhecidos pelos habitantes entusiasticamente pró-britânicos, que conduziram os carros na direcção certa e os inundaram com caixas de frutos secos, pelos quais a região é famosa».

Ligado por laços de sangue maternos à nobreza germânica, o Duque não escondia o seu pendor pelo III Reich, que já visitara em 11.10.37, no meio de grande polémica.

Edward era filho da princesa Mary of Teck [de seu nome completo Victoria Mary Augusta Louise Olga Pauline Claudine Agnes May], mais tarde a Rainha Maria, a qual era por seu turno filha de um nobre alemão Franz Paul Karl, Duke of Teck, da casa de Württemberg.

As suas reflexões, por vezes descuidadas, não poupavam o Governo britânico e só podiam ser objectivamente úteis a Adolph Hitler. Entre elas a ideia de que a Guerra poderia terminar, não fosse a política britânica de agressão à Alemanha.

A sua vinda a Portugal vinha envolta em mistério e a sua chegada cruza-se com a visita oficial do Duque de Kent, o qual se encontrava entre nós para participar na «comemoração dos centenários» e poderia ver o lustro da sua participação ensombrada pela feérica atenção que naturalmente a imprensa dedicava a tudo o que se relacionava com as andanças do casal Windsor.

A visita do Duque de Kent foi acolhida com a maior ênfase, pois vinha em representação do próprio monarca britânico, o rei Jorge VI, de seu nome Albert Frederick Arthur George, Duque de York, rei desde 11 de Dezembro de 1936.

Da sua comitiva faziam parte o Almirante Lord Chatfield, o Field-Marshal Lord Birdwood, o coronel Humprey Butler e Sir Stephen Gaselee, bibliotecário do Foreign Office e reputado académico sobre assuntos portugueses.

O Governo de Lisboa instalou-o na Palácio de Belém, residência oficial do Chefe do Estado. Não há fotografias que sejam fáceis de encontrar quanto à sua presença em Lisboa.

Na altura, as relações entre Portugal e a Grã-Bretanha estavam, no ângulo diplomático, no seu melhor.

Churchill havia reconhecido publicamente que, no cenário da guerra, Portugal era a mais velha aliada dos britânicos. Salazar havia feito na Assembleia Nacional a célebre declaração de neutralidade «colaborante».

Do cerimonial da visita de Estado, e a marcar o bom relacionamento político entre ambas as nações, fez parte a condecoração de Oliveira Salazar com a G.C.M.C. [Knight Grand Cross of The Most Distinguished Order of St. Michael & St. George].

Ora, ante o legítimo representante da Coroa britânica, que acabara de partir de regresso a Londres, a chegada do Duque de Windsor não poderia ser mais inoportuna, senão mesmo provocatória.

Na verdade, Jorge VI fora aclamado Rei devido à abdicação do Duque de Windsor, pelo que a presença de um lembrava necessariamente esse difícil episódio de sucessão dinástica.

Tradutor de tudo isso são as memórias do Embaixador inglês em Lisboa à data, Sir Walford Selby [K.C.M.G., C.B., C.V.O], editadas em 1953, sob o título Diplomatic Twilight, 1930-1940 por John Murray, pois que aí não se dedica ao episódio mais do que umas simples dez linhas, o mais sucintas que um diplomata acreditado poderia consentir-se. E, no entanto, Selby era amigo de Edward; só que não poderia furtar-se à embaraçosa situação.

Por causa da vontade do Presidente do Conselho, Doutor Oliveira Salazar, em manter estes inesperados visitantes no recato da discrição ou não, o certo é que, sendo supostos hospedarem-se no sumptuoso «Hotel Palace» no Estoril, Eduardo e York e a senhora Walis acabariam como hóspedes do banqueiro Ricardo Espírito Santo, que os acolheria na sua vivenda, ainda hoje existente, fronteira à Boca do Inferno em Cascais.

Mais tarde, em entrevista ao jornal Rhodesia Herald, 08.08.57, Sir Walford Selby, o Embaixador britânico em Lisboa, contaria pormenores: «nas circunstâncias consultei o gerente do Palácio Hotel no Estoril no que respeita a instalações condignas. Foi ele quem decidiu que, nas condições de confusão que tinham acontecido o Duque ficaria melhor instalado numa “villa” do que num Hotel e assim se fizeram, os arranjos necessários».

É que o Hotel Palácio no Estoril, sendo um local cosmopolita, era seguramente um lugar menos controlado pelos alemães do que a vivenda do banqueiro Ricardo Espírito Santo, confidente de Salazar. Colocar o Duque na sua casa não era só um acto que permitia a discrição desejada por Salazar; era seguramente confiá-lo a um ambiente para si mais natural.

Retirado de circulação, o Duque seria entretido em convívio social por vários hóspedes. Por ali passaram, entre tantos, o Conde de Lancastre, o Visconde de Soveral, o Barão de Almeida Santos, Nuno Brito e Cunha, Tomás Pinto Basto, o Ministro das Finanças, Dr. Costa Leite (Lumbrales) e o dos Negócios Estrangeiros, Dr. Luís Teixeira de Sampaio.

Discretamente, faria umas quantas visitas a Lisboa, a maioria para tratar de assuntos de seu interesse imediato, mas sempre monitorado à vista pela PVDE, a Polícia de Vigilância e de Defesa do Estado, na altura dirigida pelo Capitão Agostinho Lourenço.

Por mero protocolo, Eduardo visita o Chefe do Estado, General Óscar Fragoso Carmona e o Presidente do Conselho de Ministros, Oliveira Salazar.

O interesse da Polícia pelo Duque espelha-se nos relatórios de observação que minutou a seu propósito e de que Salazar teve conhecimento directo.

Para as autoridades portuguesas o propósito político era claro: manter o Duque no conforto de um local retirado, mas o mais silencioso possível.

Uma entrevista que dera ao Diário de Notícias foi cortada pela Censura e o noticiário da sua chegada a Lisboa relegado para páginas menos visíveis.

Ora é precisamente neste Cascais terra de clausura que o Duque, depois de confirmar a sua aceitação no regresso à mãe pátria, recebe, com alguma dorida indignação, através de uma carta, a notícia do destino que lhe está atribuído: o posto de governador das Bahamas, o qual, descontado o «panache», correspondia, na prática, a um exílio forçado para longe da atenção do mundo social.

As Bahamas tinham tido como governadores de 10 Janeiro de 1932 a 1934 Sir Bede Edmund Hugh Clifford, em 933, Sir Bede Edmund Hugh Clifford, de 1934 a 1940 Charles Cecil Farquharson Dundas [em 1938, Sir Charles Cecil Farquharson Dundas.

De 18.08.40 a 28.07.45 1945 caberia o cargo ao Duque de Windsor, Suceder-lhe-ia Sir William Lindsay Murphy.

A entrega da carta ocorreria na sequência de um equívoco ainda maior.

Na verdade, dias antes, o embaixador Selby havia-lhe entregue uma outra missiva, assinada por Winston Churchill, pela qual o monarca era pura e simplesmente mandado regressar a casa.

Embaraçado quanto ao modo como haveria de efectuar tal comunicação, o tímido diplomata chama de parte o régio personagem e condu-lo, para maior discrição, para a Biblioteca da Embaixada e aí, a sós, transmite-lhe a entretanto decifrada mensagem.

Nela, com rigorosa fria secura, Churchill intimava-o nestes termos: «Sua Alteza Real assumiu uma patente militar activa e a recusa em obedecer a ordens da autoridade militar competente criaria uma situação séria. Espero que não seja necessário o envio de tais ordens. Devo pois fortemente sugerir o acatamento imediato da vontade do Governo».

Era uma situação insustentável e um tom a rondar o inadmissível. Regressar a Londres, nestes termos, era pura e simplesmente o render-se a uma ameaça.

Regressado à sala, Edward, tentou, com compostura, escamotear a ambiência difícil que acabara de viver e que lhe turbava a serenidade e assim com pretensa fleuma, comentou para a mulher que «I thought it proper to set Walford straight», tentando explicar a razão da conversa a sós com o Embaixador do seu país. Era o quadro possível para a visível inferioridade que vivera no momento.

Mais tarde, nas suas memórias, a Duquesa relata a cena nas suas memórias, tentando um toque de grandeur por esta forma:

«Embora Winston Churchill não tivesse podido obter do Palácio de Buckingham as respostas às questões de David acerca do que iria ser feito quanto a David e a quanto a mim própria, Winston pressionava agora David para esquecer as suas condições e para regressar a casa nos hidroaviões. Mas David, muito embora admirasse Winston e estivesse ansioso por regressar a Inglaterra, não estava a fim de ser convencido. Informou o Embaixador de que não sairia de Lisboa até saber em que ficava. E por causa desta pendência solicitou a Sir Walford que mandasse os aviões regressar imediatamente».

Só que a verdade era um pouco mais linear do que esta elíptica e insincera descrição.

De facto, logo no dia seguinte, o Duque faz enviar a Londres um enviado seu para tentar obter do Governo a definição de um estatuto aceitável para si e para sua mulher.

Atento, o informador da PVDE, que lhe monitorava todos os passos apercebe-se de que no dia 5, às 6 da manhã, o secretário major Philiper (sic) seguiu «de carro para Lisboa a fim de tomar o avião que o conduziu a Londres onde foi tratar de negócios do Duque, ficando de regressar dentro de uma semana».

O convite para as Bahamas chegaria entretanto.

A comunicação, irritantemente, chega a Lisboa horas depois de o Duque manifestar o seu desejo de regressar a Inglaterra.

De facto, a mensagem telegráfica, apesar de classificada como «most immediate», só chegaria pelas 2 e 10 da madrugada às mãos de David Eccles, a antena local do MEW (Ministry of Economic Warfare) e o responsável afinal pelas operações especiais em Lisboa.

Londres havia alterado a ordem de batalha. Tal como, em 1990, ironizou o biógrafo oficial do Duque, Philip Zielgler, no seu livro King Edward VIII, the official biography, esta segunda mensagem era «um ramo de oliveira num ambiente de alta efervescência».

A carta de convite/intimação vinha firmada por Winston Churchill, o Primeiro Ministro britânico. Os seus termos deixavam pouca margem para dúvida.

Eis o texto, em tradução livre: «Estou autorizado pelo Rei e pelo Gabinete a oferecer-lhe a nomeação como governador e comandante em chefe nas Bahamas. Se aceitar, será possível transportá-lo a si e à Duquesa, directamente de Lisboa, tudo dependendo da actual situação militar. Por favor faça-me saber sem demora se esta proposta é satisfatória para Sua Alteza Real. Pessoalmente, estou certo de que é a melhor abertura nesta difícil situação na qual nos encontramos. De qualquer ângulo, fiz o melhor a) Winston Churchill».

O que é certo é que esta cena de ordens e contra-ordens, em que num dia o Duque é suposto regressar a Londres, noutro é suposto seguir rumo às Bahamas, indicia não desorientação da Coroa britânica e do seu Governo, mas seguramente um golpe de rins estudado por razões que até agora foram mantidas secretas.

Expedida em 4 de Julho, e timbrada do Foreign Office, tal missiva tinha este passo elucidativo «Personally I feel sure it is the best open in the grievious situation in wich we all stand».

Para bom entendedor bastava.

É então que nasce o enredo crucial da história.

Confrontado com a humilhante mensagem, Sua Alteza pergunta a David Eccles, que a entregara em mão, que conselho lhe daria em tal matéria, mas no fundo sente que não tem já outra via de escape.

Educado em Oxford, David Eccles desempenhou a sua missão de representante do Ministry of Economic Warfare [Ministério da Economia de Guerra] no nosso país em três períodos distintos. Primeiro, entre Abril e Novembro de 1940, depois entre Junho e Novembro de 1941 e finalmente da Janeiro a Agosto de 1942.

Em 22.03.41, a caminho dos EUA – onde apresentaria a Roosevelt um plano para o abastecimento e permissão de relações comerciais com a França livre, o Marrocos francês e a Espanha – entrevista-se com Salazar (ANTT/AOS/CO/NE-7A, pt. 8, fls, 210-214).

Passada a Guerra, vem a assumir responsabilidades governativas na Grã-Bretanha, sendo Ministro das Obras Públicas. Em 1961, desempenhando o cargo de Ministro da Educação, vem a Lisboa e é recebido na Rua da Imprensa à Estrela, a residência oficial. Diz ter encontrado um Salazar entristecido, que lhe lamenta ter concedido à polícia política poderes para fazer coisas que todos lamentavam.

Reformado em 1973, desempenhou então o cargo de Primeiro Presidente da Biblioteca Britânica.

Em 1983 publica na The Bodley Head a sua correspondência com a mulher, travada entre 1939 e 1942, sob o título By Safe Hand.

A sua presença em Portugal, na altura em que aqui chegou o Duque de Windsor, centrava-se na missão de gerir o bloqueio inglês à Alemanha, evitando que esta encontre no mercado os produtos necessários ao esforço de guerra que leva adiante.

Rendido aos encantos do país, Eccles nutre uma profunda admiração afectuosa pelo Presidente do Conselho de Ministros, como se lê numa sua carta escrita para a mulher, Silby: «Salazar é realmente uma maravilha, tão calmo, tão eficiente, tão romântico e, não posso deixar de acrescentar, tão extraordinariamente interessado em mim. Mas que não haja engano. Ele vive em reclusão com uma governanta e uma menina adoptada, que julgo ter sete anos. Ninguém detectou jamais um impulso sexual na sua pessoa. Por isso, a sua afeição por mim pode ser considerada pura».

Só que não se tratava apenas de uma mera eleição pessoal. Convencido da bondade da política do chefe do Governo, a quem não hesita chamar de «o grande homem», Eccles não tem dúvidas em informar para Inglaterra que a manutenção de Salazar «é do interesse do governo de Sua Majestade» e que tudo deveria ser feito para o consolidar na chefia de Portugal.

Em 22 de Junho relata mesmo que a Inglaterra apoiava Salazar na sua luta contra os elementos da «quinta coluna» que minavam a sua permanência no posto.

Já quanto aos Windsor, as suas confidências conjugais são mais cruéis: no livro não se exime a manifestar quanto os detesta e da Duquesa diz mesmo, numa carta escrita em 08.07.40, de modo sardónico, que é «a battered warhorse in a halo hat». Mulherengo, acaba porém seduzido pelos encantos da mundana senhora Simpson e pelo seu estilo incrível e perigoso. Por obra e graça dos jantares com os Windsors  as resistências da antipatia vão decaindo e os preconceitos contra essa mulher que ele a princípio tinha por vulgar nos gestos esbatem-se também.

Por ter partido de férias entre 25 de Julho e 13 de Agosto, Eccles está, porém, fora do país durante todo o tempo em que decorre a trama em torno do Duque de Windsor. Por isso, não tem qualquer fundamento a afirmação de Anthony Cave Brown na sua biografia de «C» [Sir Stewart Menzies], segundo a qual o casal Windsor teria sido colocado «sob a vigilância pessoal de David Eccles».

E, por isso, no próprio dia, depois de almoço senta-se à máquina de escrever e conforme sabe, redige e subscreve uma declaração de aceitação.

Na sua carta para a mulher, escrita no próprio dia 4, Eccles é lapidar quanto à atitude do Duque e quanto à sua opinião sobre Walis: «almocei com os Windsors hoje. Eu não daria dez shillings por Walis, ela é uma pobre criatura. Ele adora-a e está de óptima saúde. Ele aceitou o lugar [de Governador das Bahamas] sob grande pressão de HE [Sua Excelência, o Embaixador] e do teu afeiçoado DE [David Eccles], como tu verás nos jornais. Uma solução muito astuta. Pelo menos significa algum reconhecimento para ela. Ele é muito quinta coluna, mas isto é só para ti. Jantarei com eles no sábado e darei mais detalhes depois disso».

A referência a «uma solução muito astuta», na sua singeleza, põe a descoberto a trama que se terá passado.

Decidida a partida, a Duquesa encarrega a criada francesa Marguerite Moulichon de se deslocar a França para recuperar o guarda-roupa indispensável à mudança para tais longínquas paragens.

E o Duque inicia a peregrinação pelas companhias de navegação, para obter acomodação condigna. A ideia de visitar a América povoa-lhe a imaginação e causa calafrios em Londres e em Washington.

Mas o factor tempo começa a trabalhar contra si. E os factores de decisão pronta começam a amolecer.

Sabida a sua hesitação, e sendo ele suposto a partir de Lisboa regressar a Inglaterra, movem-se de ambos dos lados forças impressionantes respectivamente para o convencer a aceitar e para o demover a partir.

É o surgir de uma saga relativamente à qual ainda hoje hesito quanto a encontrar uma qualificação adequada aos factos.

[continua…]