Que a complexa vida sentimental e sexual do poeta Fernando Pessoa não se tenha resumido à hesitante relação com Ofélia Queiroz em 1919 e 1929, pautada pela contenção e pela ideação erótica inconsequente, antes tenha conhecido algumas excepções a favor de relacionamentos carnais, é hoje um tema já esboçado nos estudos biográficos sobre o seu estranho e múltiplo ser.
Que uma dessas possíveis excepções tenha sido com uma enigmática “mulher loura”, presente em um dos seus poemas, é questão já colocada basicamente em dois estudos, o do brasileiro José Paulo Cavalcanti Filho, advogado e homem de Letras, e subsequentemente, com mais pormenor, no de José Barreto, académico da Brown University [ver aqui], os quais a identificam como sendo “Madge Anderson”, que se viria a casar com Frederick William Winterbotham, oficial da Força Aérea, alocados ambos aos serviços secretos britânicos. Reitero esta referência no prefácio que escrevi ao romance inédito de António Quadros, intitulado A Paixão de Fernando P., editado este mês.
Segundo estas fontes, Madge era irmã de uma cunhada de Pessoa, Eileen Anderson, esta casada com o meio-irmão do poeta, João [John] Rosa, bancário em Londres, sendo essa a relação familiar que os aproximaria.
Cavalcanti louva-se no depoimento do sobrinho do poeta, João Maria Nogueira Rosa, o qual alude à circunstância de a inglesa estar recém-divorciada e ter uma «relação misteriosa» com o seu tio.
É, porém, Richard Zenith quem, na sua recente biografia de Pessoa, avança com dados novos e de rectificação de algumas das informações que eram tidas por assentes, nomeadamente que Madge tivesse estado em Portugal em 1929 e que fosse divorciada à data, antes era então solteira, esclarecendo documentadamente a irrealização desse possível relacionamento.
Segundo o biógrafo, antes de 1935 Madge não conhecia Fernando Pessoa, pois é uma carta de João Nogueira Pessoa para aquele, datada de 10 de Abril de 1935, que anuncia a viagem da inglesa a Portugal, sugerindo-lhe o remetente que fosse, com sua meia-irmã “Teca” [Henriqueta Madalena], buscá-la à chegada e a ajudassem a instalar-se em hotel, pois ela tencionava passar três ou quatro semanas no Estoril.
Madge chegaria a Lisboa a 15, por via marítima.
Sucede que, à semelhança do relacionamento com Ofélia Queiroz, Pessoa, mau grado a insistência de Teca, viveu, ante Madge a convulsão entre o desejo e a inconsequência, a tal ponto que acaba por lhe enviar em Setembro uma carta – de que Zenith cita o rascunho – a penitenciar-se pela ausência, aludindo a uma profunda depressão que o afundara então e pedindo-lhe que se lembrasse dele «com caridade cristã e não com simples desprezo humano».
A isto ela responderia em carta íntima, irónica, saudando-o, ao seu «patetinha dramático», «com toda a ternura», mas não deixando de o repreender pelo «truque do afundamento», pretexto para a fuga à possibilidade.
Relacionamento íntimo possível mas frustrado, após a recepção desta missiva Pessoa escreveria o seu último poema em língua inglesa, a mesma língua de se que se socorrera para a escrita dos seus versos de cunho mais sexualizado.
Trabalharia Madge nesse ano de 1935 já nos serviços secretos britânicos, como é sabido que assim sucedeu a partir de 1939? A documentação que consultei não o demonstra de modo evidente.
Após estudos na Universidade escocesa de St. Andrews, Margaret Mary Moncrieff Madge (née Anderson), onde se licenciou em 1926, empregou-se no Foreign Office em 1927.
Em 1939 seria colocada nos Broadway Buildings [St. James] sede do MI6/SIS, ao serviço do Government Code & Cypher School, entidade incumbida da criptografia das comunicações britânicas e análise das interceptadas.
O edifício ocultava a natureza das missões de espionagem que ali se efectivavam, ostentando na entrada a sinalética Minimax Fire Extinguisher Company.
Em 1942 Madge seria transferida, com o posto de Senior Assistant, para Picadilly, onde teve a cargo o apoio à descodificação e transcrição de comunicações diplomáticas interceptadas clandestinamente em Bletchley Park.
É então que, em 1939, casa com Frederick William Winterbotham, lendário oficial da Força Aérea, o qual desde 1929 estava integrado no MI6, sob a direcção, primeiro de Hugh Sinclair e depois de Stuart Menzies.
Naquele ano correspondente ao início da Segunda Guerra, Frederick foi colocado em Bletchley Park, na Hut 3, incumbido de elaborar relatórios de intelligence a partir da descodificação, pelo pessoal colocado na Hut 6, das comunicações alemãs criptografadas pela máquina Enigma.
Entre 1940 e 1945 trabalharia nos Broadway Buildings.
O casamento com Madge seriam as suas segundas núpcias, pois em 1921 estivera casado com Erica Horniman, a que se seguiriam outros dois casamentos [com Joan Petrea Trant, em 1948 e com Kathleen Price, em 1987].
Frederick Winterbothm, publicaria em 1974, editado pela Weidenfeld and Nicolson, o livro Ultra Secret, o primeiro que revelou a natureza das operações que eram efectivadas em Bletchley Park.
O livro seria criticado por imprecisões, ante o que o seu autor viria a esclarecer que não dominava a criptologia pelo que no recorte da situação que ali relatou desconsiderava essa faceta.
Faleceria em 1990, a morte de Madge ocorrera dois anos antes.