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Um Duque na Boca do Inferno- 2ª parte

Na primeira parte deste artigo encontrámos o Duque de Windsor e sua mulher, Walis Simpson, confinado no Estoril, com surtidas a Lisboa, hesitante entre o oferecimento do Governo britânico no sentido de aceitar o humilhante cargo de Governador das Bahamas ou deixar-se exfiltrar, pela mão dos alemães, para Espanha e daí para uma viagem que o poria em território alemão, ao serviço das conveniências estratégicas de Adolph Hitler.

De Berlim as operações são comandadas a alto nível e passam nomeadamente por convencê-lo a partir para Espanha. Daqui, segundo uma tese teimosa que tem persistido em afirmar-se, seria raptado e usado, a partir de então, como um instrumento de propaganda do III Reich.

O problema parece-nos ter hoje uma configuração clara: que o poder em Berlim estava interessado em criar condições para que o Duque pudesse escapar ao domínio britânico é seguro; que ele estivesse disponível para o efeito, pois que psicologicamente fragilizado com tudo o que tinham feito contra ele por causa da sua ligação sentimental, é plausível; agora, que do plano alemão fizesse a priori parte a ideia de um rapto, isso é uma tese que, convindo claramente à defesa do prestígio da casa de Windsor, só tem consistência se aceitarmos – quod erat demonstrandum – que Eduardo só à força aceitaria sair para uma zona de controlo alemão.

E se não, vejamos o ilogismo de aceitar que o plano implicasse levá-lo à força para Espanha, pois que havia sido desse país que ele precisamente viera com destino a Portugal.

Num esquema de golpes e contra-golpes, a vitória acaba por sorrir aos britânicos, que, mobilizando para o efeito uma acção coordenada, vêm com alívio Sua Alteza embarcar em 1 de Agosto de 1940 no navio Excalibur rumo à sua gaiola dourada.

E que se passou em Cascais, nesse prélio de bastidores pelos quais as forças antagonistas jogavam os meios já sofisticados da guerra psicológica, tentando por um lado convencer o Duque dos riscos de uma viagem marítima num oceano infestado de submarinos nazis e num barco carregado de judeus, e por outro, aliciá-lo a sair para um posto que só poderia ser tomado com um acto abnegado ao serviço de Sua Majestade o Rei Jorge VI ?

Os factores em presença corriam favoráveis a Berlim, evidenciando que o Duque estava pronto para ser cultivado…

Rodeado de cortesias oficiais, acolhido pelo próprio Embaixador britânico em Lisboa, Sir Walford Selby, o tratamento dado à presença do Duque em Lisboa mostrava que a sua pessoa estava em desgraça pública junto da Corte e da política inglesas.

Informado de todos estes factos, Joachim Ribbentrop, Ministro dos Negócios Estrangeiros alemão, decide-se a actuar.

O assunto teria sido tratado com o próprio Führer, Adolph Hitler. A oportunidade era única.

Walter Schellenberg, no seu livro de memórias, descreve a conversa que teve com o Ministro dos Negócios Estrangeiros Ribbentrop – e que por dever de fidelidade confiara a Heydrich – a propósito do caso.

Nessa entrevista, o Ministro menciona-lhe que desde 1936 Hitler havia encarado as ideias do Duque em prol da causa do III Reich como a razão subjacente à sua abdicação e que podiam ser usadas a favor do seu regime.

Eduardo, precisamente por causa da sua ideologia, estaria de aí diante como que prisioneiro dos serviços secretos britânicos e ansioso por se libertar, assim lhe surgisse a oportunidade.

Ora a oportunidade era precisamente aquilo que Schellenberg deveria criar, agora que o Duque estava em Lisboa, ao dispor.

Não se tratava necessariamente de um rapto, antes, no limiar cru das palavras, de um «suborno» ou de processo de aliciamento.

Na verdade, segundo a descrição de Schellenberg, Hitler havia autorizado o depósito, numa conta na Suiça, da soma de cinquenta milhões de francos suíços em favor do Duque, desde que ele praticasse um gesto que pudesse significar a sua dissociação «com as manobras da Família Real Britânica».

A escolha da Suíça não seria inocente. É que, ainda segundo o  Reichsminister Ribbentrop, tratava-se de um país que, embora neutral, «não estava fora da área de influência militar e política do III Reich».

Haveria que tomar a dianteira, mas com cuidado.

Na verdade, Berlim não podia confiar esta missão delicada ao seu Embaixador em Lisboa, Oswald Barão von Hoyningen-Huene.

Primeiro, porque se tratava de alguém cujas simpatias nazis eram duvidosas.

Depois, porque a própria personalidade deste diplomata tradicional, então com cinquenta e seis anos de idade, era tudo menos apropriada a ter parte neste género de iniciativas de tipo clandestino.

O Barão Oswald von Hoyningen-Huene, aristocrata investido em funções diplomáticas, permaneceu como Embaixador alemão em Lisboa desde 1934 a 1944, ou seja, antes do início da Segunda Guerra até praticamente à parte final do mesmo.

Germânico, conservador, não nazi, Hoyningen-Huene, fez o melhor que podia pela Nova Ordem. Viveu dez anos em Lisboa, seis já durante a Guerra. Terminaria preso, mas deixaria atrás de si uma lenda.

Quando em Novembro de 1944 se tornou público, através da imprensa, que o Ministro da Legação alemã em Lisboa, von Hoyningen-Huene, ia deixar o seu posto, o então Embaixador britânico Sir Ronald Campbell sentiu que tinha motivo para preocupação.

Escrevendo em 30 de Novembro para Anthony Eden, não hesitou em dizer que esse evento «marcava o fim de uma época».

Hoyningen-Huene apresentou as suas credenciais em Lisboa em 24 de Outubro de 1934, sucedendo ao Dr. Freytag, cuja idade já o incapacitava de ser aquilo que a nova ordem teutónica esperava do seu pessoal diplomático. O novo chefe da Legação tinha então cinquenta e quatro anos de idade.

O Presidente Hindenburgo falecera umas semanas antes e Hitler autoproclamara-se o Führer do III Reich.

Jurista, com formação académica na Alemanha e na Suíça, fizera a primeira parte da sua carreira no sistema judicial alemão e só entrara para o departamento jurídico do Ministério dos Negócios Estrangeiros depois da primeira Grande Guerra.

Fluente em português, que aprendera para o efeito, seis meses após a sua chegada a Portugal, já se permitia dirigir-se nessa língua em Coimbra a um restrito auditório, que o escutou embevecido, no Instituto Alemão, dirigido por Providência Costa.

Mas foi em 3 de Março de 1939, na respeitável Sala dos Capelos da Universidade de Coimbra, que se proporcionaria a oportunidade de, alargando o campo, teorizar sobre «A Unidade Alemã, evolução e realização duma ideia», na honrosa presença do Reitor, do Director da Faculdade de Letras, Eugénio de Castro, e de um significativo corpo de Doutores.

O Instituto Alemão editou o texto, no volume IX do seu Boletim. A Coimbra imprimiu uma separata.

O discurso, fino de erudição e inteligência, desmente em larga medida a ideia de um sensível distanciamento entre o orador e o pensamento de Hitler, a quem ele tributa ali as mais dedicadas palavras de enobrecimento. Emocionado, a findar a sua alocução, afirmou von Huene na solene Sala dos Capelos, «vós, Portugueses, melhor do que muitos outros povos, havereis de compreender os sentimentos de profunda admiração e comoção com que eu, simples, mas sincero e ardente patriota alemão, neste momento, depois desta visão retrospectiva, me inclino perante o génio do meu povo e do supremo Chefe da Nação: perante o génio da Alemanha e de Adolf Hitler».

Ante a chegada dos Windsor, Huene tem um problema difícil para gerir.

Inteligente e bem informado, percebe qual a importância estratégica que para a causa alemã significa Sua Alteza, o Duque.

Para ele, a personalidade «do homem que podia ser rei» dizia-lhe tanto que se permitira intitulá-lo, em conversa com o Secretário Geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal, Teixeira de Sampaio, como «o nosso primeiro Presidente da República da Grã Bretanha».

Só que, sabendo que de Berlim chegaria alguém especialmente mandatado para tratar do assunto, no caso Walter Schellenberg, retira-se prudente, não se envolvendo directamente na operação.

Quatro anos passados sobre tudo isto, em finais de 1944, von Huene seria finalmente chamado a Berlim, abandonando o posto de Lisboa. Esperá-lo-ia a prisão.

Sai efectivamente de Lisboa sem ter apresentado despedidas, tendo assegurado a Salazar que voltaria dentro de «duas semanas».

Haveria, pois, que montar um circuito paralelo de modo a criar uma força de pressão psicológica em torno de Eduardo.

Para isso, os alemães socorrem-se dos germanófilos que tinham em Espanha.

A posição oficial espanhola durante a segunda guerra não era, como a portuguesa,  a de «neutralidade», mas sim a de «não beligerância».

Sob a direcção de Francisco Franco Bahamonde, o regime espanhol manteve um equilíbrio em que a balança pesava muito mais para o lado alemão, devido ao peso específico dos falangistas e nomeadamente de Ramón Serrano Suñer, cunhado do «Caudillo» e seu ministro do Interior.

Sobre a sua personalidade, será interessante ler-se uma biografia escrita por Ignacio Merino, com prefácio de Paul Preston, intitulada Serrano Suñer, historia de una conducta, Editorial Planeta, 1996.

Entre 09.08.39 e 20.07.45, o Governo espanhol era formado, na área dos Negócios Estrangeiros, por Juan Beigbeder Atienza (até 16.10.40), Ramón Serrano Suñer (até 03.09.42), Francisco Gómez-Jornada Sousa, Conde de Jordana (até 03.08.44) e José Félix de Lequerica y Erquiza.

Ramón Serrano Suñer era advogado de profissão, tendo desempenhado o cargo de advogado do Estado em Saragoça. Casa com Ramona Pólo, irmã da mulher de Franco.

Conservador e germanófilo, foi deputado pela União Direitas e posteriormente da CEDA até à sublevação militar. Fracassada esta, é preso.

Conseguida a custo a sua libertação, retira-se de Espanha, onde regressa em 20.02.37.

Em Janeiro de 1938 é ministro do Interior e em Agosto de 1939, Presidente da Junta Política.

A sua aproximação aos alemães faz com que, em Setembro de 1940, visite a Alemanha, em representação do «Generalíssimo». Havia sido nomeado recentemente como titular da pasta dos Assuntos Exteriores.

Ignorando o que se trama, o Duque dá-se progressivamente conta de que as andanças do seu caso não são compatíveis com uma saída rápida do país.

Por isso, a 7, domingo, quando os seus anfitriões se retiram, no fim de um pesado dia de convívio com os seus ilustres hóspedes, as ideias estão assentes: a permanência vai ser mais longa do que em princípio se imaginara e a vivenda seria, até mais ver, o local de expectativa e de enfabulação. E, à meia-noite, ao acenar as despedidas a Ricardo e a sua esposa, Mary Coehn, Eduardo já sabe que o dia seguinte trará visitas importantes.

De facto, pelas dezoito horas e cinquenta minutos de segunda feira, dia 8, aterra no aeroporto da Granja, em Sintra, o avião da carreira Madrid/Lisboa, transportando um amigo íntimo do casal ducal, D. Javier Bermejillo, conhecido como «el Tigre», e a quem a Duquesa trata afectuosamente como «tiger dear».

Enviado especial, este diplomata ficaria na vivenda durante cinco dias. Vinha a mando do Ministro dos Negócios Estrangeiros espanhol, o coronel Juan Beigbeder y Atienza, mas também como «emissário confidencial», com instruções da parte do Embaixador alemão em Madrid, Eberhard von Stohrer, transmitidas através do elemento mais germanófilo do governo do «Generalíssino», o cunhado de Francisco Franco Bahamonde, Ramón Serrano Suñer.

No seu livro, publicado em 2000, intitulado Hidden Agenda, que na edição francesa se chama Le roi qui a trahi, Martin Allen cita um telegrama de von Stohrer para Ribbentrop [DGFP, telegrama n.º 2298, ref.ª B15/002545, série D, volume X], no qual informa que o ministro dos Negócios Estrangeiros de Espanha Beigbeder y Atienza lhe havia dito que «o Duque de Windsor pediu-me que enviasse a Lisboa um homem de toda a confiança a quem pudesse entregar uma mensagem para o ministro dos Negócios Estrangeiros [Ribbentrop].

A 9 e a 10, o enviado especial desenvolve os seus contactos principais. A ambiência é de tal modo promíscua que os alemães conseguem monitorar com pormenor os acontecimentos e manter a Chancelaria do Reich informada sobre o decurso da situação.

Sob o olhar míope da PVDE, saem de Cascais pelas 16 horas, num mesmo automóvel, o Duque, o seu ajudante de campo – o capitão George Wood – e «el Tigre». Os primeiros rumam à Embaixada britânica, o espanhol à Casa de Espanha.

Voltam a sair no dia seguinte, pelas onze da manhã, os ingleses para o mesmo destino da véspera, D. Javier para a Embaixada alemã, reencontrando-se todos pelas 13 horas na Embaixada espanhola, a caminho do nº 7 da Rua 1º de Dezembro, para então aí comprarem charutos havanos.

A 11, repete-se a cena, mas agora ainda com maior promiscuidade, o capitão Wood e D. Javier a deslocarem-se à Embaixada britânica para buscar documentos que vinham num envelope lacrado com os dizeres «Gabinete do Rei» e que, segundo a PVDE diz ter conseguido espreitar, «dizia respeito às condições do armistício imposto pela Alemanha à França e um outro inseria as condições impostas pela esquadra britânica à francesa».

Assim dotado de informações seguras, von Hoyningen-Huene, o Embaixador alemão em Lisboa, telegrafa nesse dia 11 para Berlim a relatar que, segundo «espanhóis que rodeiam o Duque informaram», este «pretende adiar a sua ida para as ilhas Bahamas o mais possível pelo menos até ao princípio de Agosto, de modo a que os acontecimentos se lhe tornem favoráveis».

E acrescenta o aristocrático diplomata alemão esta frase enxovalhante para o régio personagem: «o Duque acredita definitivamente que a continuação de intensos bombardeamentos, tornará a Inglaterra pronta para a paz».

A 12, uma vez mais, o périplo é comprometedor: D. Javier faz-se conduzir pelo «chauffeur» de serviço, primeiro à Embaixada Alemã na Rua do Pau de Bandeira e de seguida à espanhola, demorando-se até à noite.

E noite particularmente activa haveria de ser essa. O Duque, o Capitão Wood e «o Tigre» empregues na redacção de correspondência e em constante contacto telefónico com as Embaixadas britânica e espanhola.

Todo o jogo está combinado de origem: o Duque dita para Londres as suas condições que, parecendo insignificantes, vêm a mostrar-se, afinal, uma forma subtil de ir entretendo o tempo e de provocar Londres a dizer «não».

Ao sair para Sintra no dia 13, para tomar o avião das seis e meia com destino a Madrid, D. Javier, traz, de facto, notícias do estado de espírito do Duque e da sua preocupação em poder recuperar os seus haveres em França, mas traz sobretudo algo que o Embaixador alemão em Madrid se encarrega de comunicar em mensagem cifrada urgente para Berlim:

Nicólas Franco Bahamonde, irmão do «Caudillo», e então Embaixador em Lisboa, havia recebido instruções expressas do Ministério dos Negócios Estrangeiros para advertir o Duque contra o que poderia significar a aceitação do lugar nas Bahamas.

Mas já ciente de que a operação no momento consistia em segurar o Duque em Lisboa, Stohrer sugere que se aceite o pedido daquele para que a sua criada francesa, Margerite, fosse autorizada a viajar a Paris, via Madrid, acolitada por um camião, com o propósito de recuperar alguma bagagem, sobretudo a de Madame.

É que esse tempo de viagem confere aos alemães a preciosa dilação de que precisam para convencerem em definitivo Sua Alteza Real a não aceitar o cargo para que Londres o convida e confere ao Duque o tempo necessário para se deixar convencer. E, de facto, os dias começam a correr sonolentos.

A 14 e a 15, não saem de Cascais.

A 16 e a 18, há jantares, primeiro na Embaixada britânica, depois na americana.

Só que o Duque, jogando inteligentemente nos dois tabuleiros, evidencia esforços no sentido de que a viagem para as Bahamas se efectue através de Nova York.

A 9, já escrevera ao major Gray Philips manifestando a importância dessa deslocação americana, para que a Duquesa pudesse ser vista por médicos naquela que era sua terra natal.

E a 12, o príncipe arriscara mesmo uma carta ao Primeiro Ministro, Winston Churchill sugerindo que fossem levantados os sabidos obstáculos à sua viagem através dos EUA, dado que já fizera, entretanto, contactos com os agentes europeus da companhia de navegação «United States and Export Lines».

Por isso, quando no dia 18 janta na Legação americana e no dia seguinte para ali se dirige carregando uma pasta de trabalho, já tinha reservas provisórias para uma viagem para o dia 1 de Agosto.

Só que um telegrama do major Philips, recebido na véspera, traz notícias desanimadoras: Londres não aceita a projectada deslocação através da América e Roosevelt, agora em plena corrida eleitoral, também não veria com bons olhos a presença deste mediático e controverso monarca, a lançar confusão no ambiente já conturbado pela ambiência de guerra em que o isolacionismo americano era cada vez mais comprometedor.

Oficialmente, o Governo de Sua Majestade o Rei Jorge VI dissimula a sua recusa escudando-se em razões técnicas.

O ambiente pesa.

Os dias que seguem são um vaivém de mensagens entre Londres e Lisboa a propósito da pretendida deslocação americana e do pedido de que seja liberto do serviço militar alguém para o escoltar nessa viagem.

Assoberbado pelos encargos da guerra, Churchill exaspera-se com o tempo que perde nestas minudências e a 24 telegrafa em linguagem seca: está fora de questão a estadia em Nova York, como moeda de troca; fique o Duque com Flechter, o desejado ajudante, a quem, a título excepcional, o «War Office» concede licença para o efeito. Esta decisão, remata o Primeiro Ministro, «deve ser aceite».

Parece ser a estocada final.

A 20, escrevendo a um amigo, George Allen, o Duque já confidenciara o que parecia ser o seu pensamento íntimo: «não tenho alternativa senão ir».

Só que os espanhóis, comanditários dos alemães, não desarmam.

Avança então para Lisboa, Don Miguel Primo de Rivera y Saenz de Heredia, o terceiro Marquês de Estella, irmão do lendário José António, o criador em 1933 da «Falange».

[continua]